segunda-feira, 22 de agosto de 2011

Eu não pedi para vir pra cá


- Vive aí, otário.
- Mas... mas o que é isso?
- Nada.
- Que lugar é esse? Como eu vim parar aqui?
- Aceita.
- Mas eu não pedi para vir pra cá.
- Sinto muito, não há o que fazer.
- Tá bom...
- Não fique aí parado. Em breve você vai sentir fome e sono. Vai precisar de um lugar pra descansar e de alimentos.
- Se não...?
- Você vai sentir dores. Vai se sentir péssimo. É uma merda. Acredita em mim.
- Mas eu não pedi para vir pra cá.
- Eu sei.
- Quem me trouxe pra cá?
- Eles.
- Eles? Só vejo uma ali.
- O outro sumiu. Foi embora.
- Mas não é ele o responsável por eu estar aqui?
- Também.
- Então?
- Ele foi embora. Aceita.
- E aquela ali? Ela também é responsável pelo fato de eu ter vindo pra cá, certo?
- Certo.
- Ela não pode me dar esse tal de alimento e esse tal de descanso?
- Pode, mas por algum tempo.
- Ok. E quando esse tempo terminar, o que eu faço?
- Você vai sair, vai ler, vai estudar, vai pegar chuva, vai sentir frio, fome, sede, calor, vai ser rejeitado por todo mundo, vai ser odiado, vai sentir todo o tipo de dores, vai se sentir cansado, vai tomar remédios, vai sentir sono, vai ter problemas, vai apanhar na rua, vai ficar doente, vai pro colégio, faculdade, vai ser alguém, vai trabalhar, vai ganhar dinheiro, vai ser bem sucedido.
- Pra quê?
- Pra poder ter alimento e um lugar pra descansar.
- Mas eu não pedi por isso.
- Aceita.
- Mas eu não quero. Não posso ficar aqui, quieto e sozinho?
- Pode. Mas, como te disse, em breve vai sentir dores.
- Tudo isso se resume em dores e sofrimento?
- É.
- Não posso ficar em silêncio? Eu posso fingir que não estou aqui?
- Não.
- Por quê?
- Já disse. Vai começar a sentir dores. Vai ter que comer.
- Hum... Quem fez isso?
- Ninguém.
- …
- Ah, e não esquece de continuar respirando.
- O que é isso? Como eu faço?
- Não se preocupa. É automático.
- Tem como eu parar?
- Tem.
- E o que acontece?
- Vai morrer.
- O que é isso?
- É sair daqui.
- Então me ensina a parar de respirar!
- Não tenho como. Você tem que tentar.
- Vou tentar.
- Ok.
- Por que o meu corpo não deixa eu ir até o final?
- Porque você é obrigado a viver.
- E se eu forçar?
- Vai sentir dores horríveis mais intensas do que o normal.
- Mas não vale a pena se no final eu sair daqui?
- Talvez. Não sei dizer.
- Não dá. Dói muito. Por que é tão difícil?
- Porque você é obrigado a viver.
- Não tem outra forma de fazer essa coisa? “Morrer”?
- Tem, mas é difícil. Seu corpo vai fazer de tudo para que isso não aconteça.
- Por quê?
- Porque você é obrigado a viver.
- Quer dizer que eu não tenho escolha?
- Exato.
- Mas algum dia eu vou sair daqui? Isso não é eterno, né?
- Não é. Um dia vai acabar.
- Ainda bem. Demora muito?
- Muito. O suficiente pra sentir todo o tipo de dores possíveis.
- E o que eu faço durante esse tempo?
- Vai ficar aí sofrendo. Vai fracassar bastante. Pra poder comer e descansar.
- Nossa. O que é aquilo ali?
- Pessoas.
- Pessoas?
- É. Você também é uma pessoa.
- Tá bom. Mas eu não preciso ficar perto delas, né?
- Vai precisar.
- Algo me diz pra ficar longe delas.
- Sinto muito.
- Por que elas estão aqui?
- Pelo mesmo motivo que você: nenhum.
- E elas não sentem vontade de sair daqui?
- Poucas. Apenas os lúcidos. A maioria gosta.
- Não posso acreditar que gostem disso aqui.
- Nem eu.
- Como assim?
- Também já estive aí.
- E como foi?
- De repente ouvi uma voz dizer “vive aí, otário”.
- Putz. E aguentou até o final?
- Não.
- Então?
- Consegui parar de respirar.